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Paratudo/Paratodos: o encontro do singular e do comum

É da mestiçagem e do encontro de substâncias heteróclitas que o trabalho de Reynaldo Candia vai se costurando: pintura, desenho, bordados, postais antigos, embalagens, cadernos de viagens, tecidos, o couro, a taipa, a linguagem do cangaço – todo um campo afetivo e simbólico recolhido em viagens ao nordeste brasileiro, numa espécie de saga pessoal mitológica e política que remonta às origens de uma ideia de identidade nacional. Entretanto, a dimensão política que se estabelece nessa empreitada nada tem de panfletária, mas resgata o sentido político do lugar onde esse percurso desfaz unidades fixas e se entrega verdadeiramente à dimensão da alteridade. Trata-se de acolher uma ambiguidade fundamental: a transmissão do intransmissível, a partilha do comum-incomum, do próprio-impróprio.

 

Há muitos registros históricos de viajantes e expedições européias que deixaram documentos iconográficos notáveis e importantes, mas a aventura visual empreendida por este artista-viajante sugere uma torção: ele percorre paisagens tão íntimas quanto públicas, subvertendo o lugar destinado à iconografia nordestina, aplicando um corte preciso capaz de extrair lirismo e forças poética e cromática únicas, inventando um vocabulário semiótico pensado a partir da experiência da alteridade como uma espécie de profanação, na medida em que os objetos e acontecimentos do mundo se abrem a um novo e possível uso, como bem relatado por Giorgio Agamben em “Profanações”: uma linguagem que se emancipa de seus fins comunicativos e se prepara para um novo uso, para uma nova experiência da palavra e do olhar.

 

Ao reconhecer as nuances e atravessamentos da cultura, Reynaldo Candia sustenta um hibridismo poroso que se deixa atravessar pela potência do contágio entre mundos: da bebida de raízes amargas que guarda a ambígua nomeação de “Paratudo” é extraído o ponto fulcral de um trabalho que se utiliza da iconografia  popular para construir uma espécie de cartografia afetiva e existencial do país, uma cartografia que transforma a sintaxe ao inventar o que está sempre por nascer no mundo e em si. E aqui, a fina subversão do título “Paratudo/Paratodos” inclui o cancioneiro brasileiro, ao lembrar a música de Chico Buarque de Holanda que reafirma aquilo que tremula em seu percurso: “pra seguir minha jornada / e com a vista enevoada / ver o inferno e maravilhas”.

 

A viagem que Reynaldo Candia empreende é mais um exercício de caminhar pela tradução do que uma reiteração daquilo que comumente é chamado de tradição nordestina. Tanto na literatura quanto no campo das artes plásticas, ou mesmo no enlaçamento dos dois, encontramos um solo fértil que reinventa a história a partir de um elemento intempestivo ou disruptivo, como no livro “Um acontecimento na vida do pintor-viajante” do escritor argentino César Aira, que acompanha os passos do pintor Rugendas em sua viagem à Argentina, na primeira metade do século XIX. A viagem foi interrompida por um acontecimento que iria marcar a forma do pintor representar a “paisagem natural” do país. Esse estatuto intempestivo que subverte a utilidade das coisas é um tema já abordado tembém por Nietzsche, ao contrapor o peso excessivo da tradição e do passado ao tremor do instante: este é um procedimento que interessa ao pensar sobre o percurso de Reynaldo Candia.

 

Outros artistas – como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Portinari, Pancetti e Guinard –  colaboraram com a formação da identidade nacional, mas a criação de Reynaldo Candia opera um trânsito entre o dentro e fora, promovendo um arejamento nas representações: entre a mitologia e o mistério há algo da singularidade do artista que se enoda com o mundo. Ele captura em sua subversão na relação com os objetos e materiais as diversas dimensões da fé e da magia, traços do sincretismo religioso e da reza que é quase poesia. Reynaldo é um materialista mágico que sabe capturar o insondável da presença das coisas no mundo e sua compreensão de país se mostra atravessada pelo enigma que advém daí. Paisagens do cangaço, rendeiras, tecidos típicos, horizontes coloridos, viagens ao imaginário brasileiro que revelam trilhas abertas nos campos poético e político, sustentando diálogos maiores entre o singular e o comum ao transpor limites geográficos.

 

No processo de construção de identidade cultural encontramos “Nordeste”, livro de Gilberto Freyre, cujo objetivo declarado não era o de apenas mapear e demarcar, em diversas áreas temáticas, o especificamente nordestino, mas também o de fixar a região como berço da nacionalidade brasileira, guardiã das raízes e tradições culturais da nação. O que já se encontrava em disputa era a autoria da arquitetura simbólica: os modernistas, apoiados na força real e simbólica da nascente indústria e a proposta regionalista com sua força imagética e apelo telúrico. 

 

É importante destacar o processo de descentralização que faz uso da tradição indo além dela, imiscuindo-se no mundo. Vicente do Rego Monteiro, foi um dos primeiros a elaborar, ainda na década de 1920, uma fusão entre o apego a tipos e motivos nacionais e a necessidade de dialogar com as experimentações artísticas em curso no mundo. Há ainda a tradução construtivista da simbologia dos ritos religiosos afro-brasileiros feita por Rubem Valentim e a recriação plástica, cuidadosamente tecida por Mestre Didi, dos valores e códigos do candomblé, por ele tornadas esculturas que abrem significado ao mundo. Também sincréticas são as obras de Gilvan Samico, há anos cavando no veio da madeira o universo imagético da literatura de cordel.

 

A obra de Reynaldo Candia estabelece diálogo com toda essa construção, e também cria algo novo que estimula o resgate, de modos vários, do repositário de símbolos, mitos, técnicas e imagens que confirmam o Nordeste como um partícipe da diversa, complexa e impura herança cultural do mundo. O artista, de herança espanhola, persegue os gestos e objetos encantados do cangaço, mistura elementos locais sem purismo e sem a intenção prévia de encerrar o destino da cultura. Seu trabalho traz, para o campo codificado das artes visuais, distintas expressões da vida ordinária – aquilo que pertence ao território doméstico – e também instaura uma concepção nova de conflito e de singularidade com implicações sobre as relações entre sujeito e sociedade.

 

A partir dessa perspectiva, a arte de Reynaldo encontra seu terreno: um território movediço e em constante despossessão no qual ele abriga sentidos variados, e não necessariamente conflitantes, sobre a identidade brasileira. Seu ponto de partida é o sertanejo, o que implica observar como ponto fulcral de sua proposta e de sua deriva, um olhar que não se pretende total. Como artista, Reynaldo não busca uma adesão perfeita ou uma fidelidade a determinado lugar, mas situa-se a contrapelo deixando-se interpelar criticamente, de modo a refazer a partilha das partes num dado corpo social. Se coloca algo de si, é a partir de um rigor frente ao trabalho de pesquisa: o artista faz uso da matéria de sua memória, das lembranças da casa dos avós paternos. A força cromática revelada deriva dessa matéria: na casa dos avós havia um guarda-roupa antigo, pintado de azul, um azul de que nunca se esqueceu. Já a precisão na construção de seu trabalho vem do contato com linhas, réguas e formas que conheceu desde a infância através dos pais arquitetos.

 

A série “Postais” mostra essa partilha de símbolos, valores e ritos nascida da pintura, em livros, de casas nordestinas visitadas pelo artista. Destaca-se seu olhar para a arquitetura vernacular e uma paleta cromática espessa de tinta a óleo que cria uma espécie de escrita sobre escrita. Destaca-se esse aspecto da escrita que permeia seu trabalho, e há também a evocação de toda uma tradição de escritores, artistas e memorialistas, que criaram a partir do real. E real aqui se entende como aquilo que escapa e que, justamente por isso, serve às ficções produzidas em seu interior inominável. Há também, a partir de impressões de imagens de postais antigos da década de 1950, em madeira com intervenção a óleo, a presença de palavras e símbolos que reescrevem uma iconografia e uma literatura sertaneja. Os cartões possuem a marca do tempo e promovem um efeito de borramento muito importante para a poética de Reynaldo, como elemento densamente experimental, com distinta familiaridade com a matéria e, sobretudo, com o imprevisto.

 

“Porta retratos” é uma série surgida da simbologia de antigas fotos emolduradas e da experiência vivida no Rio Grande do Norte. Da parede repleta de simbologias da casa por ele habitada, o artista extraiu fotopinturas e imagens sacras. Seu discurso inclui tanto o regionalismo como o espaço que se desdobra e articula ao mundo – a partir de influências portuguesas, holandesas, africanas e indígenas – um legado de mitos, paisagens e memórias que singulariza a região, tributos de uma herança cultural que se transmite. Reinaldo cava nos “porta retratos” um espaço vazio para a transfiguração cromática, aliando uma paleta intensa a materiais sobrepostos – um espaço simbólico que também se encontra nas “Bandeiras”, feitas com tecido popular e tinta a oléo, com as quais se encontra uma possibilidade de reconstrução dos signos de um país para além do ufanismo vazio. O artista injeta pulsação nos signos e os realoca.

 

Muito desse imaginário nordestino está condensado em cadernos de viagens com desenhos e pinturas em que Reynaldo Candia remapeia o nordeste e reinventa uma cartografia, a partir de um diário em que estão guardadas referências, histórias e palavras colhidas no percurso das pesquisas e execução das obras. É um relicário que abriga seu olhar, pensamentos e tensionamentos sobre a identidade cultural nordestina e brasileira, um espaço heteróclito de onde derivam interrogações fundamentais que o artista sustenta como um desmanche de bordas, com contaminação entre regiões, com discursos e imagens que reafirmam a força da diferença na construção do comum. Do ambiente cultural complexo e diversificado do nordeste brasileiro deriva sua obra, como uma ampliada cartografia da produção e circulação simbólicas. É somente a partir do mapeamento desse espaço de negociação entre a tradição local e as várias culturas, que se pode traçar o esboço de uma  identidade cultural nordestina e, por consequência, uma ideia de país que passa, necessariamente, pelas raízes nordestinas e por uma história de resistência que deixa suas marcas na materialidade agreste. A taipa e o couro, por exemplo, apresentam esse estatuto de um fazer com a precariedade.

 

Na série “Defesa” há uma extração feita do sacrifício e de rituais sincréticos que envolvem a estética do cangaço, os pontos da umbanda, uma magia que deriva da iconografia presente nos chapéus de cangaceiros que cumpriam não só uma função estética, mas também de proteção ou de blindagem mística. Há estrelas de oito pontas, cruz-de-malta e outras simbologias que, com suas marcas ambíguas, fazem parte do processo de pesquisa: chapéu, roupas, facas, o couro colorido que magicamente acende as cores da vida e também a cor de terra.

 

A presença encarnada da taipa cria um corpo vivo, o barro, a extração do solo que faz pulsar as paisagens míticas de um mundo retratado por figuras como Frederico Pernambucano de Mello – historiador importante para o trabalho de Reynaldo Candia – ou pelo cineasta Rosemberg Cariry, que captura a luz enviesada do sertão, a bravura e a fé constitutivas que emanam daí. Essa cosmologia que encanta Reynaldo percorre os caminhos maís íntimos de uma paisagem de espaços abertos, também a partir de “Casa”.

 

O espanto com o espaço doméstico e as construções deriva de sua relação com a arquitetura. De Gordon Matta Clark – o arquiteto dos cortes e suportes – ele se encaminha para as casas nordestinas: seu interesse se desloca para as cores e às construções poéticas das casas nordestinas, com mulheres na janela ou rezando em magníficos altares na frente da porta. Dentro das casas, todas as marcas e inscrições que o artista recolhe para inventar uma constelação nova entre espelhos, tecidos, rendas de bilros, santos e heróis míticos. O nordeste é agora tecido sobre um delicado e complexo mapa de influências recíprocas e de negociações com outras culturas. A estranheza tão bonita que se encontra nos trabalhos que se abrigam sob o nome de “Casa”, inclui uma série que remete aos utensílios de uma casa nordestina e, junto disso – superstições, plantas, espelhos, portas, janelas, candeias, luz das velas, o lusco-fusco dos dias e das noites que invadem as construções – os elementos geométricos recriados numa paleta de cores vibrante.

 

É importante destacar que o trabalho de Reynaldo Candia promove uma torção crítica em tudo aquilo que é tomado como cultura popular, folclore ou regional. Nos “desenhos bordados”, ele se vale de elementos associados a cultura e paisagem local, como os pássaros da região, mas seus trabalhos cruzam e hibridizam sempre espaços distintos que remetem a tensões entre o local – os elementos culturais de seu próprio entorno – e o global, como na obra “Você já foi à Disney?” – em que a partir do bordado, elemento local, se aborda criticamente a colonização – ou como em “Ceci n'est pas Paraiba”. É possível perceber uma heterogeneidade interna a esses trabalhos, que são ressignificados e recontaminados de forma mútua, promovendo migrações de olhares, materiais, técnicas, suportes, imagens de uma obra à outra, gerando poéticas marcadas pela coexistência de múltiplos sentidos e pela ruptura de uma leitura colonizada. No trabalho de Reynaldo, o regional está misturado às práticas contemporâneas e o caráter mestiço dos trabalhos demonstra que essa oposição nem sempre faz sentido. De bordados em algodão cru surge também uma reflexão sobre a gestualidade e a presença das mãos tão vivas nos trabalhos do nordeste. Das rendas ao esculpir das madeiras, são essas mãos que constroem o cotidiano e o sonho, como nos lembra o historiador da arte Henri Focillon no belíssimo ensaio “Elogio da mão”, em que se retoma essa beleza incerta do gesto frente à possibilidade de uma arte mecânica que independe do toque, do contato entre mão e mundo, entre o eu e o outro.

 

A dimensão política da arte se dá justamente no impasse que se ergue entre as fronteiras tênues que se comunicam no percurso de Reynaldo Candia, que se debruça sobre questões da diferença e insere a alteridade como elemento fundamental de sua poética. O artista se desloca de seu eixo, encetando um poderoso debate sobre a questão da identidade. Seu mergulho na espessura do universo nordestino parte do pressuposto de que na arte e na vida se constroem ficções que podem restaurar relações entre regimes heterogêneos do sensível. Jacques Rancière afirma em “Os paradoxos da arte política” que a arte pode estabelecer um embate entre os sentidos prontos e instalar o dissenso ao reconfigurar os limites do sensível no interior dos quais se definem os objetos comuns, rompendo com a distribuição do visível e do invisível, convocando cada sujeito a deixar sua marca radical e única na geografia, na história, na escrita do mundo. 

 

Entre tecidos, tintas, rendas, bordados, papéis artesanais, espelhos, postais, roupas, embalagens, livros e cadernos, uma bricolagem de materiais e afetos faz vicejar o campo expandido da escrita: palavras esparsas escavam os trabalhos numa arqueologia que investiga por dentro questões tão tênues quanto vulcânicas. Reynaldo Candia descortina questões do Brasil profundo ao caminhar pela superfície das coisas e, também, pela espessura, num ir e vir como o de Henri Michaux que no fim do percurso da obra “Equador”, navegando o Amazonas como viajante-aprendiz pergunta: “Mas onde fica a Amazônia?”. Embora Michaux esteja no rio e navegue por ele, não vê o rio. Para ver o rio é preciso subir, pois não basta a horizontalidade do deslocamento, mas é necessária a verticalidade da abstração, a cartografia, a ficção. E é dessa mesma maneira que Reynaldo empreende sua viagem: movendo-se por meio de perguntas sem dissolvê-las, abrigando no trajeto dúvidas que palpitam e que, por vezes, galopam, explodindo divisões estanques entre tradição e tradução na dispersão ensaística de um percurso que flerta apaixonadamente com o real, como bem nos lembra Guimarães Rosa: “O real não está na saída e nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.


 

Bianca Dias – psicanalista e crítica de arte

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