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Intermitente - Um processo de Reynaldo Candia

Vai, me conta de novo aquela visita à biblioteca abandonada.

E como um professor paciente atendendo ao pedido de um aluno vidrado numa história, Reynaldo Candia me contou pela terceira vez sua ida a uma escola cuja biblioteca repleta de livros se encontrava abandonada. A visita se deu durante o movimento de Ocupação das escolas públicas de São Paulo – “Não fechem a minha escola”. Movido por sua curiosidade de artista, Candia resolveu entrar numa escola ocupada para conhecer de perto o assunto. Ciceroneado por alguns alunos, percorreu a escola até passar pela biblioteca e percebeu que aquele local que outrora tinha sido um dos corações daquela instituição, hoje se encontravaduplamente abandonado: pelos alunos que seduzidos pelo universo digital já não tinham interesse em devorar seus livros e pelos funcionários, que ali já não tinham mais função. Ao se deparar com dezenas de livros empoeirados e abandonados ele se lembrou dos exercícios que vinha fazendo. Sua matéria prima era o gesso e o resultado final parecia o fóssil de um livro, caso isso existisse, ou um objeto encontrado nos escombros de Pompéia, por coincidência,  o mesmo nome do bairro onde se localizava a escola e também seu ateliê. Era como se ele tivesse criado a imagem que fantasiosamente o destino guardava para os livros daquela biblioteca. Ao chegar em seu ateliê Candia criou mais um livro de gesso, onde esculpiu na capa a frase “Uma pedra a um político”.  Esse pequeno exemplar, um belo panfleto sobre o movimento estudantil foi o primeiro de uma enorme edição – mais de cem – que ocupam hoje uma estante na galeria Monique Paton. Podem parecer livros abandonados, soterrados, petrificados, mas estão muito vivos e apesar de não haver nomes em suas  lombadas nem páginas para serem folheadas estão cheios de histórias para contar, que só dependem da imaginação e da sensibilidade dos visitantes. Muitos estão vazados como se o túnel do tempo tivesse passado por eles desvendando um pouco de seu interior, de seu conteúdo, mostrando a cabeça do escritor, o coração do artista. O estilo cada visitante pode definir o seu. Candia separou uma edição especial e pintou nas capas nuvens, algo que lhe é tão caro, criando sua própria poesia que flutua na galeria expandindo os horizontes da nossa visão e desafiando a nossa imaginação.

Se por um lado, ele se emociona com as formas únicas e irregulares das nuvens, por outro se apaixona pela perfeição do círculo, que ora atravessa seus livros ora se multiplica obstinadamente em folhas pretas de papel seja pela precisão de um compasso que retira pedaços delas, seja pelo movimento circular da mão guiada por um espirógrafo. O resultado é um jogo mutualista, um duelo entre a forma circular perfeita subtraída do papel e suas variações alegóricas, divertidas, tão presentes no nosso imaginário infantil. O encontro entre elas é uma linda desconstrução da forma, algo quase perturbador ao olhar.

O tempo de Reynaldo é lento. Os livros falam de um tempo arrastado quase infinito, suas nuvens não são empurradas por rajadas de ventos velozes e seus desenhos são extremamente trabalhosos, precisos e demorados. O pêndulo que oscila sobre uma bacia de alumínio riscando o pó dentro dela marca o compasso lento e suave dessas histórias e do próprio trabalho do artista. Assim como a dinâmica e rotina de um ateliê, assim como a labuta do dia a dia, ele precisa de um impulso para começar – seja ele o simples querer viver -  e daí segue silencioso até parar. Ele não tem a precisão de um compasso nem o ritmo repetitivo dos espirógrafos. Ele tem seu próprio tempo, sua vida própria. Não há controle sobre ele e o resultado é único. Essa é uma das belezas da arte que urge para que a gente se deleite, se presenteie com esse tempo para embarcar nas histórias que Reynaldo Candia nos oferece. Aproveite.

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