Texto
Advertência: “Para lembrar é preciso esquecer”[1]
Uma antiga lembrança permeia a produção de Reynaldo Candia. Ainda pequeno, o artista nutria estranha fixação por um baú cheio de fotografias de família. Deste baú, ainda na infância, saíram os primeiros recortes e reconfigurações de imagens, hoje uma constante em seu trabalho. Não que esse fato defina ou norteie a obra do artista, os recortes foram feitos sem intencionalidade ou consciência, e ele mesmo não lembrava do ocorrido, essa memória relatada nas linhas anteriores é de sua mãe, e veio a tona há poucos anos atrás, depois da realização dos primeiras colagens de intervenções sobre imagens.
É assim que se estrutura a obra de Candia, tira proveito desse apagar da nossa memória e do conhecimento preestabelecido que temos de certas imagens e objetos antigos, para criar um lapso, apresentando-os rearticulados através de intervenções de recortes e impressão, ou mediados por aparelhos óticos. Tal procedimento tem como finalidade propiciar estranhamento, causado pela sensação de familiaridade que essas fotografias antigas e objetos despertam, somada a dificuldade de reconhece-los perante nova configuração. Por mais que algo nos possa parecer familiar, não que dizer que o conheçamos, apenas nos diz que os reconhecemos; sabemos seu uso, seus procedimentos ou a maneira que foram feitos.
A presente exposição parte desse princípio. O próprio nome, ‘Jogo de memória’, teve origem de um souvenir de museu, um jogo com reproduções de obras de René Magritte, referência presente no trabalho do artista, bem como o Surrealismo e o Dadaísmo. O conjunto apresentado na mostra, faz menção ao jogo, seja ele o de cartas, o de sete erros, e claro, ao próprio jogo de memória.
Uma série de trabalhos é realizada a partir de cartas de baralho. Recortadas e coladas em diversas camadas e posições, as cartas criam jogos óticos que tiram proveito da própria padronagem característica delas para se constituir. Essas cartas carregam em si a própria história do jogo. Surradas, elas foram recolhidas pelo artista, que as trocou por baralhos novos com jogadores.
Reynaldo cria também grandes cartas impressas em azulejos. Elas remetem a tradição da azulejaria, que estamos mais acostumados a ver fora de circulação, em cemitérios de azulejo. Postadas lado a lado, de cores e padrões diferentes, essas cartas omitem seus ‘valores’, perdem sua função prioritária e passam a existir apenas com função estética. Ainda assim, carregam o mistério do que deveria estar oculto no seu verso, como no jogo de memória.
Com outra feitura, ainda é uma padronagem, mas orgânica e aleatória, o que seria o verso de Autocavado. Composta por poucas cores e algumas poucas informações, parcialmente apagadas pelo tempo, o verso do trabalho se forma pela lombada de três grandes pilhas de livros de enciclopédias. Do outro lado está cavada uma imagem do corpo do artista. Esse trabalho aponta para o interesse primordial de Candia, os livros encontrados em sebos, fonte de uma série de trabalhos, onde livros e fotografias são rearticulados através de sucessivos cortes.
A nuvem é imagem que se repete em algumas obras do artista. Ela aparece como metáfora da memória, em sua efemeridade e seu constante formar e dissolver. No vídeo Nuvem, um céu em meio a chuva recebe como legenda frases sobre a memória e a formação das nuvens que, coletadas de diversas fontes, estabelecem paralelos entre estes dois elementos. Esse ‘banco’ de frases serve de subsidio para diversos trabalhos, e aparece também na instalação realizada para o corredor da Galeria Virgilio. Gravada na parede, pela remoção da primeira camada de argamassa, a frase “A memória é um silêncio que espera”, acaba por evocar a própria memória do espaço.
Remover a superfície, e o cavar de Autocavado, é um procedimento recorrente na produção de Candia. Funciona como o lapso de memória, apaga uma informação para, ou revelar outra, ou deixa-la velada permanentemente.
Como dito anteriormente, o trabalho de Reynaldo Candia se apresenta sempre com imagens desconhecidas, mas estranhamente reconhecíveis e familiares, e assim elas devem ser. Com isso o trabalho carrega sempre uma dúvida que, como num jogo, coloca o espectador em xeque-mate, e traz um importante dado sobre a memória em uma advertência discretamente velada: para lembrar, é preciso esquecer.
[1] a frase “para lembrar é preciso esquecer”, me pareceu que deveria ser a ideia central do texto durante as conversas com o artista. No entanto, sempre me soou extremamente familiar. Em uma rápida pesquisa no Google descobri ser atribuída ao escritor Maurice Blanchot, no entanto não consegui localizar com precisão onde foi publicada.
Douglas de Freitas